Um filme de Anna Muylaert.
Pois o que pesa no norte, pela lei da gravidadeDisso Newton já sabia, cai no sul grande cidade
A história do Brasil se confunde com a história dos fluxos migratórios. Pensar em São Paulo, onde o filme se ambienta, não é pensar em São Paulo se não se lembrar que boa parte da população até hoje descende diretamente de milhares, milhões de nordestinos que em busca de melhores condições de vida saíram de sua terra, deixando para trás o pouco que tinham e muitas vezes a família. O mesmo ocorreu com outros centros urbanos hoje bastante desenvolvidos como Brasília e Goiânia, que têm em seus pilares o suor dos imigrantes.
Embora tenha havido algumas melhorias nas última décadas, fato é que o Nordeste segue sendo uma região mais pobre, menos industrializada, com indicadores sociais piores quando comparada com sul e sudeste. Disto, tem-se que os movimentos migratórios ainda hoje acontecem, gente que vai em busca de melhores condições de vida, de emprego, de educação nas grandes cidades. É o caso das nossas protagonistas, uma que foi para trabalhar, outra que quer ir para estudar na melhor universidade do país.
Por meio do drama e da comédia, Que horas ela volta? escancara este e outros problemas. A precariedade dos direitos trabalhistas e remuneração das empregadas domésticas, o conflito de classes que, se não é explicito, é mascarado e permanece latente, cruzando o tempo em cima de frases como "ela é quase da família".
No entanto, este comovente filme não se prende a maniqueísmos fáceis nem descamba para a propaganda ideologica. Temos ali pessoas cujas circustâncias da vida as colocaram nos papeis em que se encontram, muitas vezes sem ter consciência de suas carências e privilégios. Para aumentar uma camada a mais de complexidade na trama, ainda se vê a relação maternal entre a empregada e o filho dos patrões, que afinal foi o filho que Val de facto criou (não à toa o garoto aparentemente sente mais afeto por ela que pela mãe biológica). Isto torna a relação entre as duas famílias ainda mais cinzenta.
É a figura subversiva de Jéssica, que já despertou para estas questões de classe, que vai abrir os olhos do restante dos personagens para que estes percebam onde e como estão e abalar toda aquela estrutura social ali presente. Mãe e filha são de gerações distintas, cada uma um retrato de seu tempo. Conflito de gerações existe e está presente na obra. Inclusive o comportamento do rapaz também destoa bastante do de seus pais, sendo ele outra pessoa aparentemente disposta a quebrar algumas dessas barreiras de classe.
O roteiro é agradável, leve, fácil de acompanhar. Engraçado muitas vezes, comovente em outras. Num tom de crônica o filme avança alicerçado nas atuações magníficas das três mulheres: Casé, Márdila e Teles. Casé brilha ao mudar trejeitos, sotaque e encarnar a simplicidade e humildade de alguém que praticamente se acha morando de favor na casa dos patrões, tendo criado fronteiras bem definidas do que pode ou não pode ser feito enquanto empregada e pobre. Por esta atuação, Casé ganhou alguns importantes prêmios como atriz.
Por fim, gostaria de colocar aqui uma frase interessante de Athur Grieser escrevendo para o Cinema com Rapadura sobre este mesmo filme, e que nos ajuda a entender como essa estrutura de classes é culturalmente assimilada por todos nós:
O fato de nos sentirmos tremendamente incomodados com a conduta “folgada” da jovem é bastante sintomático, e reflete algo que está completamente enraizado na cultura brasileira.