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quarta-feira, 6 de outubro de 2021

Que horas ela volta? - 2015; confronto de gerações e classes

Que horas ela volta? (Que horas ela volta?), lançado em 2015.
Um filme de Anna Muylaert.
Filme bastante premiado em festivais, que também gerou certa revolta  das classes mais altas da população, Que horas ela volta? fala sobre a relação de empregadas domésticas com as famílias que lhes empregam.

Val (Regina Casé) deixou o Recife para ir ganhar dinheiro como empregada doméstica em São Paulo, morando no emprego. Sua filha Jéssica (Camila Márdila) ficou para trás e cresceu sem a mãe. Enquanto isso, Val criava o filho da patroa (Karine Teles). Anos mais tarde, Jéssica, já adulta, vai a São Paulo prestar um vestibular e visitar Val. Se hospeda na casa onde ela vive, faz amizade com o filho da patroa e desperta no patrão um interesse. Além disso, ela incomoda a dona da casa com suas liberdades como hóspede, uma vez que ela tem uma personalidade expansiva e insubordinada, tão diferente da mãe. Tudo isso traz à tona os conflitos de classe e gera atritos inclusive entre mãe e filha.

Pensar no Brasil de modo realista requer encarar sem medo as mazelas que trazemos. Uma delas, uma das maiores inclusive, é a discrepância econômica entre as regiões. Já cantava Belchior em seu maravilhoso disco Alucinação: 

Pois o que pesa no norte, pela lei da gravidade
Disso Newton já sabia, cai no sul grande cidade

A história do Brasil se confunde com a história dos fluxos migratórios. Pensar em São Paulo, onde o filme se ambienta, não é pensar em São Paulo se não se lembrar que boa parte da população até hoje descende diretamente de milhares, milhões de nordestinos que em busca de melhores condições de vida saíram de sua terra, deixando para trás o pouco que tinham e muitas vezes a família. O mesmo ocorreu com outros centros urbanos hoje bastante desenvolvidos como Brasília e Goiânia, que têm em seus pilares o suor dos imigrantes.

Embora tenha havido algumas melhorias nas última décadas, fato é que o Nordeste segue sendo uma região mais pobre, menos industrializada, com indicadores sociais piores quando comparada com sul e sudeste. Disto, tem-se que os movimentos migratórios ainda hoje acontecem, gente que vai em busca de melhores condições de vida, de emprego, de educação nas grandes cidades. É o caso das nossas protagonistas, uma que foi para trabalhar, outra que quer ir para estudar na melhor universidade do país.

Por meio do drama e da comédia, Que horas ela volta? escancara este e outros problemas. A precariedade dos direitos trabalhistas e remuneração das empregadas domésticas, o conflito de classes que, se não é explicito, é mascarado e permanece latente, cruzando o tempo em cima de frases como "ela é quase da família".

No entanto, este comovente filme não se prende a maniqueísmos fáceis nem descamba para a propaganda ideologica. Temos ali pessoas cujas circustâncias da vida as colocaram nos papeis em que se encontram, muitas vezes sem ter consciência de suas carências e privilégios. Para aumentar uma camada a mais de complexidade na trama, ainda se vê a relação maternal entre a empregada e o filho dos patrões, que afinal foi o filho que Val de facto criou (não à toa o garoto aparentemente sente mais afeto por ela que pela mãe biológica). Isto torna a relação entre as duas famílias ainda mais cinzenta.

É a figura subversiva de Jéssica, que já despertou para estas questões de classe, que vai abrir os olhos do restante dos personagens para que estes percebam onde e como estão e abalar toda aquela estrutura social ali presente. Mãe e filha são de gerações distintas, cada uma um retrato de seu tempo. Conflito de gerações existe e está presente na obra. Inclusive o comportamento do rapaz também destoa bastante do de seus pais, sendo ele outra pessoa aparentemente disposta a quebrar algumas dessas barreiras de classe.

O roteiro é agradável, leve, fácil de acompanhar. Engraçado muitas vezes, comovente em outras. Num tom de crônica o filme avança alicerçado nas atuações magníficas das três mulheres: Casé, Márdila e Teles. Casé brilha ao mudar trejeitos, sotaque e encarnar a simplicidade e humildade de alguém que praticamente se acha morando de favor na casa dos patrões, tendo criado fronteiras bem definidas do que pode ou não pode ser feito enquanto empregada e pobre. Por esta atuação, Casé ganhou alguns importantes prêmios como atriz.

Por fim, gostaria de colocar aqui uma frase interessante de Athur Grieser escrevendo para o Cinema com Rapadura sobre este mesmo filme, e que nos ajuda a entender como essa estrutura de classes é culturalmente assimilada por todos nós: 

O fato de nos sentirmos tremendamente incomodados com a conduta “folgada” da jovem é bastante sintomático, e reflete algo que está completamente enraizado na cultura brasileira.

 

sábado, 10 de setembro de 2016

Livro - Gente Casta

Peço que quem curte minha escrita aqui apoie a publicação de meu primeiro livro curtindo a página do projeto no Facebook:


O livro se chamará Gente Casta.



Eis um trechinho:

"Nenhum outro sentido é tão preguiçoso quanto o olfato. Assim que acordamos, abrimos os olhos e percebemos a luz entrar pela janela, vemos o parceiro a nosso lado, vemos o teto, as paredes e o armário, se os há. Também assim que recuperamos a consciência passamos a perceber os sons, o parceiro que suspira, o galo que canta, as folhas que se chocam, os cavalos que trafegam. Mal estamos acordados já a pele começa sua jornada de sentidos, é o lençol que acaricia a pele, a mão que esfrega os olhos, a perna da outra pessoa que roça a nossa, o beijo que, às vezes, nos desperta. Também o paladar dá notícia, é a boca que amarga, depois de uma noite toda com bactérias a reproduzirem-se entre os dentes, é o amargo da outra boca, aquela que nos despertou. Já o olfato continua a dormir, não percebe o cheiro que exala do corpo ao lado, não percebe o cheiro que o corpo a qual pertence emana, se recusa a dar pelo odor de sabão do lençol que nos acaricia a pele. Só quando saímos do quarto, e os vapores de urina e fezes da privada chegam nele, é que se põe a trabalhar."